quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Resoluções de ano novo, vida nova

Lehgau-Z Qarvalho

E esquiavam sobre gelo fino. A salvação estava na velocidade, pensava. Quando a qualidade nos trai, tendemos a buscar a desforra na quantidade. Sim, era isso mesmo, certificava-se a cada volta em cima do lago. Dava-se conta, a cada manobra, que, na própria essência, o desejo era um impulso de aniquilamento. Algo autodestruía-se sob seus pés, a cada manobra. Sim, de olhos fechados, dando voltas sobre o mesmo ponto, os braços bem abertos, pensava: ele, o desejo, é contaminado, desde o seu nascimento, pela vontade de morrer. Esse é o seu fim. Para isso nasce; para isso existe; mas disso, nem ele sabe.

Já o amor, por sua vez, é a vontade de atentar; de preservar o ser/sentimento cuidado. Agora ia ziguezagueando. A face corada pelo vento frio das tristes premonições. Custara a querer enxergar, mas não mais podia livrar-se de algo já tão claro. Tão transparente. Tão diante de si. Sim, o amor: um impulso que se move ou faz mover em direção oposta ao eixo de rotação, ao contrário do axípeto desejo. Um impulso de expandir-se; ir além; alcançar o que está lá fora. Comer, ingerir, absorver e assimilar o sujeito no objeto, e não vice-versa. E não tal qual o desejo. Sim, arrepiou-se, o contato com outras paragens, outros ares, outros calores, outros frios, outros fluidos, outras moléculas, nos faz menos nós; mais todo mundo.

Quando a lágrima chegou ao chão, estraçalhou-se feito vidro fino.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

o ano do rato contemplativo


pão velho, bolachas moles, balas derretidas
tenho vergonha de dar
tenho culpa de jogar fora
eu tenho vergonha de tudo
até do que não me faz
meninas sem peito até mostram as tetas
meninas sem peito até mostram as sobras
meninas sem peito
no ano do rato contemplativo
não usarão saltos
só estreitos.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Mutações






















Lehgau-Z Qarvalho

E enquanto almoça, solitário, salmão com alho-poró ao óleo de oliva e arroz selvagem (uma de suas especialidades, e das que mais gosta), e percebe lágrimas sonoras em mp3, sente-se feliz sem saber bem por quê. Ou melhor, sabe que é por causa dela, mas há algo diferente, agora. Pode-se acrescentar um pouco de molho shoyu ao salmão. De repente, dá-se conta do que é: sente-se feliz por ter aprendido a entender e a respeitar o tempo dela. O seu Modus Operandi. E, como conseqüência, se tornado, ele, menos aflito. Há quem prefira o salmão em filés, eu o prefiro em postas. E descobre que tudo isso que os atinge, há meses, pode ser muito mais profundo do que sequer pudera acreditar. É possível acrescentar folhas de hortelã para dar vida, cor e frescor ao prato. Descobre que o que está a lhe acontecer é o fim da paixão. Um bom acompanhamento é o vinho tinto; Malbec argentina da região de Mendoza, para ser exato. E, quando a paixão termina, duas coisas podem acontecer. Mas, para um almoço em um dia claro e límpido de primavera, quase verão, um branco jovem também vai bem. Uma: a indiferença ou, em outros termos, o fim de tudo. Sugeriria um Carta Magna, produzido no Chile, safra 2006, bem gelado. Outra: o nascimento do amor.

domingo, 9 de dezembro de 2007

a caminho de amanhã

todo o dia merece ser tirado do corpo
longa e compulsoriamente lavado
para que não haja dúvida
quanto a ele não ter culpa.
deveríamos ter arrumado a mala de hoje
sempre lá atrás;
o ontem grita,
e amanhã não chega jamais,
sempre vem, sempre vem.
todo o dia merece ser execrado,
depois homenageado.
em algum lugar dentro disso,
vivido.
não arrumei os papeis da bolsa,
nem limpei a geladeira,
mas tomo banho e lavo os cabelos de dentro
presente para a segunda-feira

Com as Feras na Selva

A FERA NA SELVA, HENRY JAMES


A experiência na selva. Viver ali, algumas horas corridas junto com as feras de Henry James. Este foi o sentimento que fiquei ao concluir a leitura da novela A Fera na Selva. Um texto que alcança seu ponto alto independente da dor que sentimos, de nossa compaixão ou envolvimento com o desfecho da trama – pouco importa a ânsia se temos o belo. O livro narra idas e vindas de uma história de um amor impossível, sem que nunca se tenha a percepção imediata dessa impossibilidade. Lemos ao sabor do elegante e misterioso estilo jamesiano, rico na preparação das cenas, profuso em significados e inquietações.
O enredo. Um homem e uma mulher encontram-se em diversos momentos de suas vidas, lastimam outras tantas que poderiam ter vivido, avaliam, choram, lamentam, e com isso flutuam na sugestão de seus mínimos gestos, circulando pelo raro movimento do cenário. Os protagonistas da novela de Henry James vivem juntos um conflito que mergulha no indivíduo, descrevendo através de metáforas e símbolos algum sentido vago que possa nos apontar o caminho para compreendermos o desatino daquele envolvimento emocional. O amor em seu estado bruto. No limite desse jogo de encontros e desencontros, Henry James descreve um estado de loucura sem que a palavra loucura seja nos dada; o escritor demonstra o tormento sem que em nenhum momento tenha que explicá-lo, suas origens e motivações. Com isso, leva sua narrativa ao seu ponto máximo de desespero, sem nenhuma gota de sangue. Tudo é muito elegante. O conflito está no próprio ser humano.
Sozinho, atormentado por suas feras, um homem delira.
Recomendo a leitura de A Fera na Selva não apenas como um exercício de bela narrativa curta, mas por se apresentar como uma espécie de painel da insensatez humana, um manual em branco, um caminho pleno de significações a serem compartilhadas com o leitor. A este caberá desvendar o subtexto, as nuanças, o código a ser decifrado; como aquelas imagens que passam muitas vezes por nós e que ficam incompreendidas; como se o mundo fosse um objeto distante do nosso entendimento, perdidos aqui, nesta selva.

Edgar Aristimunho

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

À um futuro do passo

o tempo fecha em branco,
o estrelado do aniz em dente quebrado,
ela apanhou na coxa,
ele escapou por um triz.

houve tumulto
não foi susto, foi circo
não foi assunto, foi piso
ele achou melhor só ir indo
ela não foi junto
há quem diga
"mereceu a putinha"
há quem diga
"quero bater também"
há quem diga
"parece que ela rouba aqui todo dia"

há a bunda dela aparecendo da calça caída
não é sexie
é despedida
é crack porque não tem cocaína,
não é sexie
é a porcaria saindo do nariz
donde há de julgar os vivos e os mortos.

lá atrás ele ia
ela escapa do círculo
anda cinco minutos comigo
eu finjo que não ligo
porque a adoção me mataria
bem longe ele vai indo
ela com a vida mancando ainda grita
....me ajuda....espera me ajuda....
como quem ajuntasse a esperança
do esporro.

à um futuro do passo
somos noivas russas
pirateando a pradaria.

francieli spohr